Ao fim do Jubileu da Misericórdia, em 2016, como sinal e herança daquele Ano Santo Extraordinário, o Papa Francisco instituiu o Dia Mundial dos Pobres, a ser celebrado anualmente no XXXIII Domingo do Tempo Comum, como digna preparação para a celebração da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo. Dizia
ele a respeito desse dia:
Será a mais digna preparação para bem viver a solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo, que se identificou com os mais pequenos e os pobres e nos há de julgar sobre as obras de misericórdia (cf. Mt 25,31-46). Será um dia que vai ajudar as comunidades e cada batizado a refletir como a pobreza está no âmago do Evangelho e tomar consciência de que não poderá haver justiça nem paz social enquanto Lázaro jazer à porta da nossa casa (cf. Lc 16,19-21). Além disso esse dia constituirá uma forma genuína de nova evangelização (cf. Mt 11,5), procurando renovar o rosto da Igreja na sua perene ação de conversão pastoral para ser testemunha da misericórdia.1
O Dia Mundial dos Pobres nasce, então, numa estreita relação com o anúncio e a vivência da misericórdia divina, anunciada e testemunhada pelos fieis discípulos de Jesus, Rei, Pastor e Servo, grande e humilde, que, sendo rico, se fez pobre para nos enriquecer com sua pobreza (cf. 2Cor 8,9). A misericórdia é a realidade, o sentido e a força que o Espírito de Deus imprimiu e ofereceu à Igreja e à humanidade inteira no pontificado do Papa Francisco. O próprio nome “Francisco” foi por ele assumido como um sinal daquele grande amigo do Senhor, o Pobrezinho de Assis, que assumiu alegremente a pobreza, não como sinal de protesto, mas como fruto da experiência do amor misericordioso do Altíssimo e Bom Senhor, e incentivo de comunhão com Deus e com os irmãos. A pobreza de Francisco testemunha a liberdade e riqueza de ser filho de Deus, tendo encontrado em seu Pai celeste o grande tesouro, pelo qual vale a pena perder tudo e oferecer tudo (cf. Mt 13,44-46; Mt 10,8). A pobreza de Francisco o torna irmão de uma multidão de irmãos e da Criação inteira!
O Dia Mundial dos Pobres não é um dia isolado, em que simplesmente se faz coisas em favor dos irmãos e irmãs pobres, para depois ficarmos satisfeitos com nossa “bondade” e “consciência social”. Esse Dia revela que o Evangelho de Cristo está em curso em todo aquele que ouve a Palavra e põe em prática o que o Senhor nos diz (cf. Mt 25,31-46). Esse Dia revela que o Senhor nos faz “próximos” de tantos para colocar-nos a seu serviço, na comunhão com eles, comunhão de bens espirituais e materiais, tal como faz e nos manda nosso Mestre e Senhor (cf. Lc 22,27; Jo 13,14-15; Lc 10,29-37). Esse Dia revela o nosso modo comum de viver, nós que clamamos “Pai nosso” e, portanto, reconhecemo-nos mutuamente como irmãos, sempre devedores do amor mútuo (cf. Rm 12,10).
O Dia Mundial dos Pobres, concentrando iniciativas conjuntas de solidariedade e serviço, serve como um sinal para a sociedade inteira, a fim de despertá-la do sono, da cegueira e da inerte indiferença diante dos pobres. Para nós discípulos de Jesus, o Dia Mundial dos Pobres nos lembre que, como disse Francisco, somos chamados a não ser
apenas Igreja para os pobres, mas Igreja pobre com os pobres.2
Neste ano, fomos presenteados com a belíssima Exortação Apostólica Dilexit te, sobre o amor para com os pobres, do Papa Leão XIV. Nela o Papa nos lembra:
[a atenção eclesial aos pobres e com os pobres] é parte essencial do caminho ininterrupto da Igreja. O cuidado com os pobres faz parte da grande Tradição da Igreja, como um farol de luz que, a partir do Evangelho, iluminou os corações e os passos dos cristãos de todos os tempos. Portanto, devemos sentir a urgência de convidar todos a entrar neste rio de luz e vida que provém do reconhecimento de Cristo no rosto dos necessitados e dos sofredores. O amor pelos pobres é um elemento essencial da história de Deus conosco e irrompe do próprio coração da Igreja como um apelo contínuo ao coração dos cristãos, tanto das suas comunidades, como de cada um individualmente. Enquanto Corpo de Cristo, a Igreja sente como sua própria “carne” a vida dos pobres, que são parte privilegiada do povo a caminho. Por isso, o amor aos pobres – seja qual for a forma dessa pobreza – é a garantia evangélica de uma Igreja fiel ao coração de Deus. Efetivamente, toda a renovação eclesial sempre teve entre as suas prioridades esta atenção preferencial pelos pobres, que se diferencia, tanto nas motivações como no estilo, da atividade de qualquer outra organização humanitária.3
O encontro com a “carne” dos pobres deve, pois, ajudar-nos a reconhecer-nos neles, a reconhecê-los como parte de nós, todos indigentes diante de Deus e devedores uns aos outros do amor mútuo (Rm 13,8). Importa também lembrar: a opção preferencial pelos pobres,4 tal como Jesus, não exclui ninguém do anúncio e do dom da salvação,5 antes, sabe reconhecer e inclinar-se diante também dos novos rostos pobres,6 trabalhando em seu favor, na sua acolhida, acompanhamento e em ações concretas, sem esquecer, porém, “que a maior pobreza é a de não reconhecer a presença do mistério de Deus e de seu amor na vida do homem e seu amor, que é o único que verdadeiramente
salva e liberta”.7
Dom Júlio César Gomes Moreira – Bispo referencial para Ação Social
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1 Carta Apostólica Misericordia et Misera, n. 21
2 Evangelii Gaudium, 198; Dilexit te, 21.35.
3 Dilexit te, n. 103
4 Papa Francisco, Audiência Geral, 19 de agosto de 2020
5 Pastores Dabo Vobis, n. 30
6 Documento de Aparecida, n. 402
7 Documento de Aparecida, n. 40